Por Franco “Bifo” Berardi em Il Desertore |Tradução Glauco Faria, Site Outras Palavras
A desintegração de Israel
“Não é o Hamas que está desmoronando, mas Israel” é o título de um artigo publicado pelo jornal Haaretz em 9 de setembro. O autor, Yitzhak Brik, general do exército israelense, explica por que a guerra desencadeada contra o povo de Gaza, apesar de ter causado a destruição de tudo o que existia naquele território, apesar de ter matado dezenas de milhares de pessoas, está levando à derrota estratégica de Israel. Se o exército de Israel [que se intitula Forças de Defesa ou IDF, em inglês] for forço a continuar essa guerra ou a expandir diretamente a linha de frente, há o risco, na opinião de Brik, de um verdadeiro colapso. O estado psicofísico dos soldados envolvidos por quase um ano na prática de operações de extermínio, juntamente com a escassez de reservistas disponíveis, levaria ao colapso e à derrota.
A exaustão física e psicológica dos torturadores israelenses me fez lembrar a história contada por Jonathan Little em seu romance Les bienveillantes, 2006 (Le benevole, 2007; The Benevolent Ones, 2019): o estado de marasmo mental, de náusea, o horror diante de si em que se encontram os homens da SS, que durante meses e anos mataram, torturaram, massacraram e, no final, não conseguem mais reconhecer o próprio rosto no espelho. O horror que os exterminadores da IDF provocam em todas as pessoas dotadas de sentimentos humanos não pode deixar de agir como um fator íntimo de desintegração naqueles que claramente pretendem competir com os assassinos de Hitler. Em seu artigo, o general Brik limita-se a examinar a situação militar, mas muitos indícios apontam para o fato de que toda a sociedade israelense está à beira da desintegração. A armadilha hedionda que o Hamas preparou está funcionando perfeitamente: o dilema dos reféns causa uma ferida que não cicatriza. O ódio que se sente por Netanyahu certamente terá efeitos políticos explosivos quando, mais cedo ou mais tarde, a liderança cínica do massacre for avaliada e responsabilizada.
Além disso, a economia israelense está em colapso há muito tempo e essa não é uma situação temporária, porque aqueles com habilidades profissionais em demanda fora do país amaldiçoado estão indo embora. Os médicos estão indo embora. Os empresários estão indo embora. Nenhum intelectual digno desse nome pode ficar em um país que rivaliza com a Alemanha de Hitler em ferocidade e fanatismo. Ficam os fanáticos, os loucos sedentos de sangue, os miseráveis que vieram para Israel apenas para tomar a terra de outras pessoas. E, acima de tudo, o que deveria ser o lugar mais seguro do mundo para os judeus se tornou o lugar mais perigoso do mundo para eles: um lugar cercado pelo ódio de 1,8 bilhão de muçulmanos, um lugar onde qualquer carro que passe na rua pode, de repente, dar meia-volta e matar aqueles que estão esperando no ponto de ônibus. Costumava haver um questionamento sobre a legitimidade de Israel para existir como Estado, dada a violência com que esse Estado se impôs e dada sua violação sistemática de todas as resoluções da ONU. Acredito que essa questão não será mais levantada: Israel não sobreviverá.
Sua desintegração já está em andamento e nada pode impedi-la. A pergunta que será feita amanhã é outra: como conter a fúria assassina de seiscentos mil colonos fanáticos armados, que se estabeleceram ilegalmente na Cisjordânia? Como evitar que a tragédia israelense provoque um golpe nuclear, uma resposta histérica à proliferação da violência nesse território cercado de ódio?
A desintegração dos Estados Unidos
Israel é o símbolo da arrogância do Ocidente, que queria reparar seus pecados: depois de isolar e repelir os judeus que fugiam de Hitler, depois de exterminar seis milhões deles em campos de concentração, os europeus convidaram os judeus sobreviventes a irem morrer ou matar em outro lugar. Em troca, prometeram a Israel total apoio contra os árabes e os persas que, humilhados pela superioridade do monstro sionista superarmado, estão cercando Israel de forma ameaçadora, esperando o momento de se vingar. Mas a desintegração de Israel deve ser lida no contexto da desintegração de todo o mundo que gosta de se chamar de livre, esquecendo-se de que está alicerçado na escravidão. Vejamos o caso dos Estados Unidos. Em 11 de setembro de 2024, comemorando as vítimas do maior ataque da história, o genocida Joe Biden disse: “Neste dia, há 23 anos, os terroristas pensaram que poderiam dobrar nossa vontade, nos colocar de joelhos. Eles estavam errados. Eles sempre estarão errados. Nas horas mais sombrias, encontramos a luz. E, diante do medo, nos unimos para defender nosso país e ajudar uns aos outros”. Nós nos unimos, diz o presidente. Ele está mentindo, como evidenciado pela foto que mostra Harris e Biden, depois o prefeito de Nova York, Bloomberg, e com eles Trump e Vance.
Unidos na luta? É risível ver seus rostos hipócritas com as mãos sobre o coração: Biden está unido a Trump, e Vance está unido a Harris… De que forma esses canalhas que se insultam diariamente estariam unidos na espera para ver quem vencerá a disputa final, destinada a acelerar a desintegração? Certamente eles estão unidos para armar o genocídio sionista. Certamente estão unidos na deportação de seres humanos rotulados como estrangeiros ilegais. Sua unidade termina aí. Quando se trata de poder, eles são inimigos mortais. Se Donald Trump vencer em novembro, será o fim do jogo: começa a maior deportação da história, mas também a destruição definitiva da aliança atlântica.
Mas e se as coisas tomarem um rumo diferente, e se Kamala Harris vencer? Os partidários de Trump não esconderam sua posição: se o Partido Democrata vencer, isso significará que os democratas roubaram nossa vitória e que não nos renderemos. Uma senhora, usando um glamoroso boné MAGA na cabeça, entrevistada pela CNN durante um comício de Trump, foi direta. Caso eles vençam, “haverá uma guerra civil”. O que significa exatamente uma guerra civil em um país onde cada cidadão possui pelo menos uma arma e muitos possuem quatro, dez ou vinte e cinco?
Não acho que haverá uma guerra civil como nos dias da Guerra Civil Espanhola, com multidões armadas se enfrentando em uma frente mais ou menos definida. Não, não é assim que se desenrolará a guerra civil da era da demência pós-política e hipermídia. Pelo contrário, testemunharemos a multiplicação de tiroteios racistas, veremos um crescimento exponencial dos massacres: teremos simplesmente o que já temos, mas em números cada vez maiores, e tudo isso com uma intensidade cada vez mais feroz e violenta. Kamala Harris, por sua vez, disse em 11 de setembro: “Hoje é um dia de lembrança solene. Ao lamentarmos as almas que perdemos no hediondo ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, ao comemorarmos este dia, todos nós devemos refletir sobre o que nos une: o orgulho e o privilégio de sermos americanos”. Ela disse as coisas como elas são. O que une os americanos (que estão divididos e dispostos a buscar o poder e os espólios) é o privilégio.
O povo estadunidense consome quatro vezes mais eletricidade do que o consumo médio mundial. E eles querem continuar consumindo excessivamente, porque somente o fato de se empanturrarem de plástico e de merda dá sentido a suas vidas miseráveis. O ataque de 11 de setembro foi uma obra-prima estratégica. O gigante militar mais poderoso de todos os tempos não podia ser derrotado por ninguém. Ele tinha de se voltar contra si, tinha de ser atacado com tanta força que enlouqueceria, que seria levado a ações suicidas, como a agressão ao Iraque e a guerra travada nas montanhas do Afeganistão, que terminou com a fuga desordenada de Cabul, o retorno do Talibã ao poder e a humilhação da superpotência americana.
Osama Bin Laden venceu sua guerra, desencadeando o processo de desintegração cultural, psicológica e militar do colosso, que ainda está se desenrolando diante de nossos olhos. Mas não podemos esperar uma desintegração pacífica do poder americano. Como Polifemo, cego por Ulisses, os Estados Unidos lançam golpes terríveis contra aqueles que se aproximam dele, porque o colosso americano está fadado a reagir: o cenário do confronto final será a Europa, se os democratas vencerem, ou o Oceano Pacífico, se os republicanos vencerem. Mas, em ambos os casos, o colosso cambaleia ao longo da linha que corre à beira do abismo nuclear.
A desintegração da União Europeia
Por fim, há a União Europeia, que, em termos de desintegração, está agora em um estágio muito avançado, certamente além do ponto de não retorno. Mario Draghi disse isso com a franqueza de quem não tem nada a perder, a não ser seu lugar na história: se não formos capazes de iniciar um plano de investimento conjunto e uma emissão de dívida mutualizada, podemos nos preparar para a desintegração da UE. No dia seguinte, todos aplaudiram com as mãos, mas todos disseram que as propostas de Draghi eram sonhos irrealistas. Primeiro, a Alemanha, que não quer falar sobre emissão conjunta de dívida, pois começa a pagar o preço de uma guerra que foi dirigida contra ela em primeiro lugar. O que Biden e Hillary Clinton conseguiram provocar foi uma guerra contra a Alemanha, que a perdeu imediatamente.
À medida que a recessão se torna cada vez mais provável, com a guerra no horizonte, os fascistas estão assumindo o governo de um país europeu após o outro e, assim, anulando o resultado de uma eleição europeia na qual a coalizão de Ursula von der Leyen pensou ter vencido e na qual, em vez disso, não ganhou nada. Embora tenha a maioria no inútil Parlamento Europeu, ela precisa contar com o avanço da direita que, embora não tenha a maioria em Estrasburgo, tende a ter a maioria em todos os países do continente. Na França e na Alemanha, há dois governos que não têm maioria. O golpe de Macron pode levar a uma escalada do conflito social com feições cada vez mais violentas. Ou pode evoluir para um golpe de Estado definitivo dos lepenistas. Na Alemanha, o choque entre duas visões geopolíticas irreconciliáveis começou: a visão atlântica, que postula a obediência aos mestres americanos, que já pressionaram o governo Scholz a romper os laços econômicos com a Rússia e, portanto, ao desastre econômico. Ou a visão continental, que implica um equilíbrio com a Rússia, mas um rompimento politicamente impossível com a OTAN. O único fator de integração que resta aos europeus (assim como aos norte-americanos, aliás) é o medo da maré humana que os assedia nas fronteiras e a adoção de medidas cada vez mais desumanas contra os migrantes. A fortaleza se fecha sobre o mundo não-branco, mas o desenrolar da guerra entre os próprios brancos e a desintegração política e cultural que sofrem os leva à guerra nuclear.